Paulo Luiz Carneiro*

Depois de um hiato de oito anos devido à Primeira Guerra Mundial, a sétima edição dos Jogos Olímpicos, em 1920, em Antuérpia (Bélgica), não teve o mesmo tom grandioso da Olimpíada anterior de Estocolmo, na Suécia. A Europa devastada pelos horrores da guerra e, especialmente a Bélgica, invadida pela Alemanha em 1914, ainda vivia uma situação econômica pouco confortável. As nações derrotadas – Áustria, Alemanha, Hungria, Bulgária e Turquia – não participaram da competição. Os Jogos foram abertos pelo Rei Albert e pelo Barão de Coubertin.

Foi a primeira participação brasileira em Olimpíada, e o resultado da pequena delegação de 21 atletas foi uma autêntica ‘zebra’. A equipe do Brasil competiu em quatro modalidades (tiro, remo, natação e polo aquático) e trouxe três medalhas: ouro, prata e bronze. Todas conquistadas no tiro esportivo. Desde então, o Brasil nunca mais ganhou medalha nas provas de tiro.

As vitórias dos atletas impressionam ainda mais pelas condições em que foram alcançadas. A equipe olímpica embarcou no navio a vapor Curvelo, que saiu do Porto do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, no dia 1 de julho de 1920. Da escolha da equipe ao embarque transcorreram apenas dez dias. O dinheiro era escasso, e a embarcação teria muitas escalas: Recife, Ilha da Madeira, Lisboa e Antuérpia. Os brasileiros, para não viajarem na terceira classe, dormiam nos salões refeitórios.

Além das noites mal dormidas e das festas a bordo, o tempo começou a preocupar. Na Ilha da Madeira foi constado que a equipe de tiro não chegaria a tempo para o início das provas, no dia 28 de julho. A solução foi desembarcar em Lisboa e pegar um trem até Antuérpia. Como não tinham recursos para a passagem, telegrafaram para a Confederação Brasileira de Desportos solicitando o dinheiro. A quantia não chegou e, do próprio bolso, o encarregado de negócios da embaixada do Brasil, Mario Belford Ramos, custeou os bilhetes.

Os atiradores foram de trem em um vagão descoberto, enquanto os demais seguiram no navio. Todos chegaram a tempo de competir.

Finalmente, em Antuérpia, receberam a boa notícia do adiamento das provas por uma semana. Assim, puderam descansar nos alojamentos cedidos pela organização. Mas, infelizmente, durante a viagem a delegação foi roubada, ficando sem os alvos de treinamento e com pouca munição para os treinos. As condições dos alojamentos, por sinal, eram espartanas: uma cama, uma mesa, refeições pagas pela própria equipe, que pelo menos tinha tempo para treinar. A munição e os alvos foram conseguidos com rivais: a delegação americana, que gentilmente os cedeu.

No primeiro dia dos Jogos veio a surpresa: a conquista de duas medalhas, uma de prata e outra de bronze. Afrânio Antônio da Costa, capitão da equipe, selecionou Fernando Soledade para iniciar a prova. Qualquer tipo de pistola poderia ser utilizada e, como o Brasil tinha apenas uma, em péssimas condições, para ser usada em rodízio, a atuação do atirador foi abaixo do esperado. Em reportagem publicada pelo GLOBO no dia 24 de maio de 1992, é reproduzido o relato de Afrânio da Costa.

– O coronel Snyders, do Exército Americano e capitão da equipe de pistola livre, se aproximou de mim e disse: ‘Senhor Costa, esta arma não vale nada, vou arranjar duas para os senhores feitas especialmente para nós pela fábrica Colt’. E voltou com duas belíssimas armas.

O desempenho mudou radicalmente, e o Brasil ganhou as suas duas primeiras medalhas em uma olimpíada. Afrânio da Costa foi o primeiro brasileiro a conquistar uma medalha: levou a prata na prova de pistola livre individual. E Fernando Soledade, Afrânio da Costa, Sebastião Wolf, Guilherme Paraense e Dario Barbosa ficaram com o bronze na prova de pistola livre por equipe.

No dia seguinte, quando foi devolver as armas para o coronel Snyders, outra surpresa: “Ele pediu que fizesse a honra de continuar com as armas e esperava que eu fosse o campeão pan-americano com elas”. Os tempos eram outros e o espírito olímpico de confraternização fez-se presente. Com essa mesma arma, o tenente do Exército brasileiro Guilherme Paraense derrotou seu principal oponente, o americano Raymond Bracken, na prova revólver (hoje, tiro rápido individual) e ganhou a primeira medalha de ouro do Brasil em Jogos Olímpicos no dia 3 de agosto de 1920.

Coincidentemente, Afrânio da Costa e Guilherme Paraense aparecem citados juntos, pela primeira vez no GLOBO, no dia 19 de setembro de 1925, na seção de ‘Sports’, que noticiava o campeonato carioca de revólver realizado no Fluminense Futebol Club. Afrânio foi o campeão, enquanto Paraense ficou em terceiro lugar.

Em 1958, o jornal fez uma homenagem aos campeões mundiais brasileiros, reunindo atletas de várias épocas, em sua sede na Rua Irineu Marinho, no Centro do Rio. Estiveram presentes o já coronel Guilherme Paraense; o bicampeão olímpico de salto triplo Adhemar Ferreira da Silva; a então recém-campeã de tênis em Wimbledon Maria Esther Bueno; Algodão (Zeni de Azevedo), medalha de bronze no basquete na Olimpíada de Londres, em 1948; Belini, o capitão da seleção brasileira de futebol campeã da Copa do Mundo de 1958; além da nadadora Maria Lenk. Na ocasião, ao cumprimentar a jovem Maria Esther, Guilherme Paraense disse:

– Eu abri o caminho à bala para vocês em 1920.

Guilherme Paraense, nascido no dia 25 de junho de 1884 em Belém, no Pará, morreu de infarto, no Rio de Janeiro, aos 84 anos, no dia 18 de abril de 1968. Afrânio da Costa, que nasceu em 14 de março de 1892 na cidade de Macaé, no Estado do Rio, tornou-se magistrado, chegando ao cargo de ministro do Tribunal Federal de Recursos, sendo também provedor da Santa Casa de Misericórdia, no Rio. Ele morreu no dia 28 de junho de 1976.

*com edição de Gustavo Villela, editor do Acervo O GLOBO

Fonte: Acervo do “O Globo”

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18 comentários

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